Hitorias


Menelau e Proteu

Menelau, regressando vitorioso de Tróia, tem agora, diante de si, a ninfa Idotéia.

- Bela ninfa, que aqui me vês perdido com meus barcos e homens nesta costa do Egito, para nós tão inóspita e longínqua quanto a extremidade do mundo! - diz o audaz navegante. -Durante os últimos anos não temos feito outra coisa senão tentar regressar a nossos lares e retomar o doce remanso que eram nossas vidas antes dessa guerra cruel, que tantas vidas custou a vencidos e vencedores...
- Oh bravo Menelau! - responde a suave ninfa. - A sua presença e a da sua esposa Helena só podem enobrecer estas águas que ora vos sustentam. Porém compreendo perfeitamente a razão das suas queixas. Por isso, vou dizer agora o que você deve fazer para alcançar o rumo de sua casa.

- Diga, ninfa gentil, e lhe seremos gratos por toda a vida! - exclama Menelau, redobrando a atenção.
- Filha sou de Proteu, o pastor dos rebanhos aquáticos de Posídon, de quem é filho, e somente da boca dele vocês poderão escutar o que as suas alma desejam ouvir. Ele tornou-se um grande adivinho, recompensado que foi por seu pai pelos serviços que continuamente lhe presta, e saberá perfeitamente indicar o caminho que vocês devem seguir.

Os rostos de Menelau e de seus homens refulgem.
- Porém, cuidado! - diz a ninfa, suspendendo um alvo dedo. - Meu pai, por ter sido tão importunado em razão desse seu dom, tornou-se o mais esquivo dos seres. Eis por que de nada valerão as artes da eloquência se você desejar dele se aproximar.

Depois de orientado, então, acerca dos artifícios de que deveria valer-se para arrancar do fugidio Proteu a informação que precisava, Menelau e seus barcos partiram com a velocidade do vento.
O dia amanheceu e segue já o seu curso. Escondidos ao pé de uma gruta não menos oculta estão Menelau e três de seus companheiros.

- Atenção, todos! - declara o comandante. - Devemos agora munir-nos de paciência e aguardar até que Proteu faça sua aparição.
O sol está a pino, e é nesse exato instante que a figura imponente do filho de Posídon surge das profundezas do mar. A água salgada escorre em cachoeiras de seus longos cabelos e lhe desce em ondas sinuosas pelo corpo escamado. Um rebanho imenso de peixes e animais marinhos turbilhona ao seu redor, parecendo disposto a segui-lo em terra.

- Estejam silentes, agora, inquietas criaturas! - esbraveja Proteu. - Chegou a hora de meu descanso, na qual terei por companheiro apenas o discreto Silêncio.
Com efeito, Harpócrates, a divindade do silêncio, ali está postada à entrada da gruta. Proteu, sabedor da natureza discreta da divindade em questão, sabia também que o melhor jeito de homenageá-la é passar por ela sem nada dizer.
- Vamos atrás - diz Menelau aos três companheiros.

Os quatro carregam a oito mãos uma corda extraordinariamente grossa, arrancada de suas embarcações. Mais tarde, tão logo escutam um forte ressonar dentro da gruta, adentram-na, sem serem importunados pelo Silêncio, que já partiu adejando, aborrecido com aquele som pavoroso.

Uma vez lá dentro todos são obrigados a tapar os ouvidos com as mãos, tão forte o ronco do deus.
- Pelos deuses! - exclama um dos homens. - Parece que escuto seu ronco nas profundezas de uma enorme concha marinha!
- Silêncio, ou daqui a pouco o escutará nas profundezas escuras do seu estômago! - adverte o prudente Menelau.

Mas Proteu está mergulhado num sono pesado, e nada além do estrépito de seu ressonar poderá tirá-lo do estado que os poetas chamam de irmão da morte.
Menelau ordena a seus homens que amarrem fortemente os membros do deus. Depois de o imobilizarem, agarram-se ainda, com todas as suas forças, aos seus braços e pernas.

- Oh Proteu, digno pastor dos rebanhos de Posídon! - lisonjeia Menelau, agarrado ao pescoço do deus. - Perdoa nossa rudeza, mas foi-nos dito que doutro modo as suas sábias palavras não se fazem ouvir.

O deus, acordando, dá-se conta de sua desafortunada situação.
- Como, então, se atrevem, reles mortais? - ruge Proteu, tentando desvencilhar-se.
Mas é tudo em vão. Sentindo seus membros completamente imóveis, o deus recorre, então, a um espantoso recurso: numa fração de segundos, ei-lo transformado em um pavoroso leão.

- Agarrem-no, ainda uma vez! - exclama Menelau, de músculos retesados. A fera  debate-se com fúria, porém inutilmente. Vendo seu insucesso, o deus muda-se agora em dragão.
- Segurem-no, mais uma vez! - exclama novamente o audaz Menelau.
O dragão debate-se horrivelmente, cuspindo labaredas para todos os lados. Mas é ainda em vão: continua solidamente preso às amarras e aos braços dos cinco homens robustos.

- Por quanto tempo resistiremos ainda a este dragão? - exclama um deles a Menelau.
Mas já é um leopardo que agora todos abraçam.
- Força, ainda uma vez!
Dentro em pouco um enorme javali escoiceia sob as cordas, arremetendo com suas presas afiadas contra os seus captores.

- Comandante! - diz agora outro homem, numa dúvida assustada. - Se é verdade que ele pode também tomar a forma da água, como faremos para mantê-lo preso em nossas mãos?
- O primeiro passo é afrouxar o músculo solto de sua língua e retesar os demais! - exclama Menelau, rubro do esforço de manter imóvel o deus.
Felizmente, porém, Proteu dá-se por vencido.

- Vamos, satisfaçam logo sua curiosidade e deixem-me em paz! - exclama o deus, furibundo. A entonação de sua voz é a de quem dá uma ordem e jamais a daquele que admite, humilhado, a derrota.
E foi assim que Menelau obteve a sua resposta acerca da direção que devia seguir para chegar em casa e partiu de volta para o seu reino. Junto dele seguia Helena, sua adorável mulher, que em artes de mutabilidade excedeu o talento de qualquer outro deus.


O julgamento de Orestes

- Orestes, filho de Agamenon e Clitemnestra! - disse a deusa Atena, pondo-se em pé, ao alto da tribuna. - Você está agora diante dos doze juízes deste Areópago para que responda à acusação de ter dado morte cruel à sua própria mãe.

O acusado ergueu-se, vacilante, e deu um passo adiante. Atrás dele, contidas a custo por Apolo, o defensor de Orestes, estavam três horrendas figuras que, com os braços estendidos, procuravam agarrar e dilacerar o réu.

Eram as Erínias, divindades infernais do ódio, da vingança e da justiça. Virgens caçadoras, eram filhas da Noite e viviam no Tártaro. Possuíam asas rápidas e horrenda fisionomia. Eram três: Megera, que personificava a inveja e o ódio, Tisífone, que açoitava os mortais com seu chicote, e Alecto, a mais terrível, que personificava a vingança.

- Para trás! - exclamou Atena, algo impaciente, às selvagens criaturas. - Cessem por um momento a sua ira, para que ouçamos o que o réu tem a dizer em sua defesa.

- O que pode dizer o assassino da própria mãe? - exclamou Tisífone, fazendo estalar o seu chicote de cobras trançadas sobre as costas do acusado.

- Sim...! - acrescentou Alecto, outra das terríveis Erínias, aproximando o facho do rosto do acusado. - Vamos inaugurar entre nós, então, o insano costume de conceder perdão aos parricidas?

- Irrisão! - gritou Megera, a terceira das irmãs infernais, com os olhos raiados de sangue. - Malditos todos aqueles que tomarem o partido deste cão odioso!

- Basta, filhas do Tártaro! - disse Atena, silenciando as três. - Quero ouvir, a partir de agora, tão somente a voz do acusado.

Um silêncio pleno de expectativa desceu sobre o recinto, fazendo-se ouvir somente o

estalar das flamas que ardiam nos archotes portados pelas sinistras irmãs.

- O que venho aqui pedir - disse Orestes, encarando os seus julgadores - é que ponham um fim aos meus tormentos, libertando minha consciência, afinal, da cruel perseguição que lhe movem estas terríveis criaturas desde o dia em que, funestamente, minha mão ergueu-se contra minha própria mãe! Eis, pois, a minha negra história - completou o acusado.

♦♦♦

"Meus tormentos começaram na terrível noite em que, ainda criança, fui acordado por minha irmã Electra, a me dizer com os olhos esgazeados:

- Meu irmão Orestes, tome suas coisas e parta o quanto antes desta casa! Senti que algo me arrancava brutalmente da mais amena província de Morfeu para me lançar no mais horrendo dos abismos de Hades.

- O que diz, Electra? - perguntei-lhe, com o sono ainda a cerrar minhas pálpebras.

- Nossa mãe, Clitemnestra, e o odioso homem que ela tomou por esposo tramam a sua morte! - disse ela, sacudindo-me, para espantar de mim os últimos vestígios de sono.

Em rápidas palavras, explicou-me, então, que, tendo ambos tramado e levado a efeito a morte de nosso pai Agamenon, planejavam agora desvencilhar-se também de mim. -justamente aquele que, futuramente, poderia querer tirar deles uma sangrenta desforra! Bastaram algumas poucas palavras do infernal Egisto para que minha mãe, baixando a cabeça, concordasse. 'Faça o que tiver de ser feito, amado Egisto, para que nosso amor não corra perigo algum...!', dissera ela, simplesmente. - 'Eu amo você, um crime selou nosso destino, e nada neste mundo poderá nos separar! Nem mesmo nas sombras mais escuras dos mais profundos antros infernais - prometa-me!

- você vai permitir que nos separem...'.

Sua consciência já a remetia, insensivelmente, aos lugares de tormento e maldição; porém, ainda assim, ela persistia no seu projeto insano de continuar a viver ao lado daquele crápula! 'Oh, Afrodite suprema, pode o amor, então, estar associado à tanta baixeza?!', perguntava-me, enquanto arrumava minhas coisas para partir imediatamente.

Antes do dia clarear, já estava a caminho da casa de meu tio Estrófio, rei da Fócida. Ele era casado com a irmã de meu falecido pai, e ali eu podia estar certo de minha segurança. Quanto à minha irmã Electra, preferiu permanecer em Argos, pois, segundo o que ouvira, imaginava não correr tanto perigo quanto eu.

Ao chegar na Fócida, fui bem recebido pelo rei e a rainha e apresentado ao seu filho

Pílades, este mesmo que aqui vem beber, com ansioso olhar, as minhas palavras.

Oh, fiel e dileto amigo Pílades! Desde então, como um irmão gêmeo, você jamais me abandonou... E mesmo neste momento de cruel provação, ainda uma vez me lança o olhar firme e leal da amizade! Que Zeus supremo, ó meu irmão - pois sempre assim o chamarei -, possa velar incessantemente pelos seus passos, em todos os dias da sua vida!"

♦♦♦

Neste momento, Orestes, tomado pela emoção, viu-se obrigado a interromper sua narrativa, pois os próprios juízes haviam curvado as cabeças para ocultar as lágrimas. As Erínias vingadoras, no entanto, ergueram ainda mais suas cabeças aduncas.

Megera, dando um salto, arrepanhou suas tranças emaranhadas de víboras, após arremessar na direção de Orestes uma cuspida de negra bile, e em seguida passou os olhos, enojada, pelos doze julgadores:

- Puá... Se tais são estes juízes, que ocultam as lágrimas por qualquer bagatela, que podemos esperar, irmãs, desta pantomima?

Apolo, então, que protegia a causa de Orestes, interveio:

- E o que entendem vocês de amizade, abutres sinistros, para que emporcalhem de maneira tão vil as belas palavras de Orestes? Querem descer, então, ao nível das harpias hediondas, que empestam com sua baba imunda tudo quanto tocam?

- Até quando permitirá, Atena, que este protetor de assassinos desafie a justiça, que clama unânime pela punição deste que aí está? - exclamou Tisífone, interrompendo o deus e apontando seu dedo adunco para Orestes.

- Acabemos com esta discussão e faça-se a justiça que todo o Olimpo espera! - bradou Aleto, a terceira das Erínias, lançando aos pés de Orestes a sua tocha ardente.

- Basta, terei de lembrar a todos que não estamos num teatro? - disse Atena, erguendo o braço e restaurando a ordem outra vez. - A palavra é devolvida ao acusado.

Procure, apenas, ser mais direto em sua narração - disse ela, cochichando para Orestes.

Este, recobrado, pôde enfim retomar a sua narração.

♦♦♦

"Como estava dizendo, tão logo cheguei à corte de meu tio Estrófio fiquei conhecendo Pílades. Tal como eu, era ainda um garoto, e assim juntos crescemos, desfrutando das alegrias que ainda nos restavam da infância.

Os anos se passaram, e um dia, já adulto, fui impelido por Pílades a consultar um oráculo, para que esse pusesse fim, segundo ele mesmo disse, 'aos meus rancores ou às minhas protelações'. Fomos, então, para Delfos e ali escutamos o oráculo proferido por Pítia, sacerdotisa de Apolo. Este foi categórico no sentido de que eu devia, a qualquer custo, vingar a morte de meu pai, Agamenon, expulsando para as regiões infernais o infame usurpador, bem como minha desgraçada mãe. Partimos, então, imediatamente, eu e Pílades, para Argos, a minha terra natal.

Depois de vários dias de viagem, chegamos finalmente, sujos e cansados -pois íamos a pé, como qualquer um, para não levantar suspeitas -, à minha terra.

A primeira coisa que fizemos foi ir logo ao túmulo de meu pai, para reverenciarmos a sua alma.

Lá chegando encontramos apenas uma jovem, que trazia a cabeça coberta por um véu, a qual não deu pela nossa presença. Sem me importar com ela, depositei um cacho de meus cabelos sobre a tumba, tomado pela emoção. Alguns instantes depois, no entanto, ela voltou-se para nós, ainda com o rosto velado, e disse:

- Não sabem, intrusos, que o acesso a este local é vedado a estranhos? Pílades, que sempre teve melhor presença de espírito que eu, improvisou logo esta resposta engenhosa:

- Perdão, jovem, mas somos estrangeiros. Sem sabermos de tal proibição, julgamos que seria um ato de piedosa devoção virmos, antes que tudo, reverenciar a memória do falecido rei.

A moça, contudo, em vez de continuar a nos recriminar, descobrira a cabeça e, fora de si, me disse:

- Benditos sejam os deuses! Será mesmo meu irmão Orestes quem tenho agora diante dos olhos?

Imediatamente reconheci naqueles jovens e belos traços a figura de minha querida irmã Electra! E antes que pudesse responder vi-me em seus braços, num pranto incontido. Disse-lhe, então, após fazer o relato daqueles anos todos de nossa ausência recíproca, da razão de minha vinda. Ela concordou prontamente com meu plano de matar os assassinos de meu pai, pois não deixara um instante de nutrir um ódio profundo, tanto por Egisto quanto por nossa mãe. Assim, ocultou-nos em sua casa - pois não morava mais no palácio -, e ali planejamos todos os passos para a concretização de nossa vingança."

♦♦♦

"Alguns dias depois", recomeçou Orestes, em seu depoimento, "fomos eu e Pílades até o palácio real e nos fizemos anunciar como dois arautos do reino de meu tio.

- Temos uma triste notícia a dar sobre o filho de Clitemnestra - disse Pílades, que segurava, de maneira enigmática, uma grande caixa dourada.

Os dois não tardaram a aparecer. O primeiro a surgir foi o assassino de meu pai. Trazia o ar francamente esperançoso, pois havíamos plantado em seu coração, com nossas calculadas palavras, a certeza de que trazíamos a notícia de minha morte.

Em seguida surgiu minha mãe, Clitemnestra.

Que dizer do aspecto que trazia, então, em seu rosto? Como negar que, suspeitando de minha morte, não tivesse o direito de ostentar em seu rosto a piedade materna?

Oh, desde aquele dia não tenho pensado em outra coisa. Mil vezes, em pensamentos ou em sonhos (que digo?, em meus pesadelos!), revi e continuo a rever suas feições estranhamente familiares. Posso reconstituir um a um o desenho de seus traços, desde o conjunto amplo do seu rosto até os seus menores gestos: o franzir de sua boca, o brilho dúbio de seus olhos - tudo, tudo! Dêem-me um carvão ou um bloco de mármore, e os reproduzirei todos, tais quais os vi, então! - e, no entanto, não saberia dizer, ainda neste instante, o que expressavam ou escondiam!.

Diferentemente de Electra, ela não me reconhecera.

Mais um sintoma de sua indiferença por mim? Ou talvez meu rosto não fosse mais o de um filho? Pode, então, um filho que germina durante longos anos no espírito a idéia de matar a sua mãe trazer ainda algo nas feições que o indique como tal? Pode uma mãe que um dia desejou a morte do filho pôr os olhos nele sem que seu coração se parta em dois? Seríamos, mesmo, ainda mãe e filho - ou já dois estranhos, que se defrontavam para um acerto final?

Só sei que quando dei por mim escutava a voz familiar de meu amigo Pílades, a qual me soava, entretanto, como que vinda de um sonho:

- Os maus fados abatem-se novamente sobre esta casa, pois eis que trazemos nesta urna as cinzas de Orestes, filho de Agamenon.

Nesse instante, meus olhos, temendo ver a alegria estampada nos olhos de minha mãe, desviaram-se involuntariamente e foram parar no rosto do impostor, o qual, eu tinha certeza, não conseguiria ocultar a satisfação.

Com efeito, vi imediatamente seus olhos brilharem. Em seguida, recuperando mal e porcamente o seu cinismo habitual, dirigiu-se a nós outra vez, velando, porém, a voz:

- São verdadeiramente funestas as novas que nos trazem... Depois, voltando-se para Clitemnestra, gemeu sordidamente:

- Oh, Clitemnestra, que dia aziago é este, que Zeus nos anuncia? Não podendo, então, suportar por mais tempo essa farsa abjeta, Pílades abriu a caixa que mantinha em suas mãos, sem, no entanto, permitir que os olhos dele vissem-lhe o conteúdo. Maldito cão infernal! Se tivesse continuado a nos olhar, teria visto luzir, então, em nossos rostos, o reflexo do aço dos punhais.

Enquanto os dois assassinos entreolhavam-se, simulando um luto atroz, Pílades sacou da caixa o seu punhal, me estendendo rapidamente o outro. E quando o rei e a rainha dirigiram outra vez para nós os seus olhares, nos encontraram já de armas em punho.

- Mas... o que é isto? - exclamou o usurpador.

Pílades, então, sem dar uma única chance para o adversário, enterrou com toda a força o ferro no seu coração. Em seguida retirou-o do peito de Egisto, que cambaleou para trás, já com a fronte gelada pela mão da Morte. Quando caiu ao chão vomitava um sangue negro, que cobriu inteiramente o seu peito infame, agora descoberto.

Ouvi um grito sufocado - um terrível e mudo grito! - que as duas mãos de Clitemnestra foram insuficientes para abafar.

- Orestes, faça agora o que lhe cabe! - gritou-me Pílades.

Levantei meus olhos do corpo retorcido do vilão e finalmente defrontei meus olhos com os de minha mãe.

Oh, sim, éramos mãe e filho, embora ao nosso jeito!

- Você... meu filho... Orestes... - gemeu ela, branca como o mármore que pisava.

Nada respondi, nem tentei justificar o ato que estava prestes a cometer. Um tal ato traz a sua própria justificação. Ergui o punhal e, desde então, nunca mais vi o seu rosto. Sua voz, porém, tive de escutar uma vez mais:

- Orestes, filho meu... Perdoe o sangue do seu sangue...

Minha mão, suspensa no ar, hesitou por alguns instantes. Mas Pílades, enérgico, repetiu:

- Orestes, lembre-se do oráculo! Faça o que deve ser feito!

O reflexo de algo brilhou rapidamente diante dos meus olhos. A lâmina, porém, ainda estava no alto, na mesma posição. Era a mesma. O aço brilhava, igualmente. Mas luzia nele, agora, uma mancha vermelha, que descia em vários filetes pelo metal, até alcançar o cabo de prata. Olhando para a frente, vi, então, estupefato, o corpo de Clitemnestra, rainha de Argos, estendido no chão...!

- Está feito o que tinha de ser - disse meu companheiro e me puxou pelo braço, para me afastar daquele lugar, para sempre maldito.
Nesse instante, porém, meu entendimento se turbou, e meus olhos se nublaram. E dessa névoa funesta vi surgirem aos poucos, à minha frente, essas odiosas criaturas - essas mesmas que ainda agora ali se assanham, ávidas por dilacerarem meu corpo inteiro!"

♦♦♦

A deusa Atena, entendendo que acabara a defesa de Orestes, deu, então, por iniciada a votação que condenaria ou absolveria o réu. Cada qual dos doze juízes ergueu-se de seu assento e dirigiu-se solenemente à urna de votação, acompanhados sempre pelos olhares ávidos dos demais presentes. Ocultamente, introduziam em uma urna uma bola branca ou preta, conforme a natureza do seu voto.
As Erínias, sempre inquietas, sibilavam ameaçadoramente a cada julgador que por elas passava, agitando suas tochas. Apolo, que recebera Orestes em seu templo para proceder à sua purificação, consolava-o, incutindo-lhe ânimo.
Encerrada a votação, finalmente Atena começou a retirar as bolas da urna. Por seis vezes sua mão colheu de dentro bolas brancas. E, por outras seis, as bolas pretas.
- Os juízes não chegaram a um acordo - anunciou a deusa, laconicamente.

Orestes, angustiado, não sabia o que dizer nem o que esperar. As Erínias abriram suas negras asas e entoaram seu espantoso hino, no qual clamavam pelo castigo mais cruel.
Atena, a justa, decidiu, então, proferir ela mesma o voto decisivo:
- Meu voto será irrecorrível - disse, olhando severamente para todos -, e ai daquele que ousar empregar palavras rudes para contestá-lo!
A deusa subiu os degraus até a urna e diante dela depositou secretamente o solitário voto.
Em seguida, um dos juízes foi chamado para retirar dali o voto e proclamar a sentença.
- Atena, deusa da sabedoria e magistrada suprema deste tribunal, decide agora pela absolvição do acusado! - disse, afinal, o juiz, retirando da urna a bola fatal.

- Parece que se encerra, finalmente, a época cruel das selvagens punições e das terríveis expiações - disse Apolo às Erínias, com o semblante luminoso.
As três irmãs, contudo, esbravejavam, clamando contra o veredito:
- Que ninguém invoque, nunca mais, o nosso nome! Do antigo templo da justiça restam, agora, apenas destroços! Guardem bem estas palavras, pois exatamente isto repetirão futuramente os poetas.
- Que lhes disse, filhas do Érebo? - perguntou Atena, encerrando a sessão.
Quanto a Orestes, abraçou-se ternamente a seu amigo e primo Pílades, sabendo que consigo encerrava-se, finalmente, o horroroso ciclo de crimes em sua família.



O Assassinato de Agamenon

-... Senhora... acuda...
Clitemnestra, rainha de Argos, estava ainda semi-adormecida, sob a claridade baça das cortinas de seu quarto, quando escutou os gritos quase incompreensíveis de sua escrava.
- Como...? O que dizes aí, louca...? - disse a rainha, emergindo do sono.
- Minha senhora - repetiu a escrava -, acuda logo ao que dizem lá embaixo!

Uma forma indistinta remexeu-se abaixo das cobertas, ao lado da rainha, enquanto esta rumava inteiramente despida para a janela de seu quarto. Depois de encobrir a nudez com a cortina, espiou para fora.
- A guerra terminou, minha rainha! - disse o arauto do reino, montado num cavalo que reluzia de suor. - Tróia está em ruínas, e Agamenon, nosso rei, está prestes a retornar!

- Escrava! - bradou Clitemnestra, voltando-se para dentro. - Mande o arauto subir até meu quarto. - Depois, lançando-se sobre a cama, sacudiu a forma que ainda permanecia adormecida e indiferente, sob as cobertas.
- Egisto, vamos, acorde! - disse a rainha, nervosa. Um rosto sonolento emergiu dos lençóis.
- O que houve... ? - murmurou.
- Vamos, levante-se de uma vez! - disse ela, vestindo-se. - Não é bom que o arauto veja você aqui dentro.

O homem ergueu-se, inteiramente nu, e depois de vestir às pressas seu manto desapareceu por uma porta secreta.
- Avise-me quando o arauto chegar - disse ela à escrava. Dali a instantes ele adentrava a peça.
- Conte-me direito tudo quanto você soube - ordenou-lhe a rainha.
Ele contou, então, que os primeiros combatentes já haviam chegado às cidades próximas, com a boa nova da vitória dos exércitos de Agamenon e Menelau sobre as forças troianas de Príamo e seus filhos Páris e Heitor.

- Nossos exércitos não tardam, rainha, a estar novamente entre nós! -completou ele.
- Então Menelau, meu cunhado, finalmente conseguiu trazer de volta sua querida Helena... E Páris, o raptor e causador de tudo, recebeu seu justo castigo?
- Páris está morto, bem como Heitor, seu irmão - disse o mensageiro, satisfeito. -
Não resta uma pedra inteira em Tróia, ao que dizem. Nossa vitória foi completa. Clitemnestra, afetando uma alegria exagerada, rodopiou pelo quarto.

- Que maravilha...!
Depois, procurando dar um tom de alegre ansiedade à sua voz, perguntou finalmente por Agamenon, seu marido.
- Ele... vive ainda?
- Sim, rainha, Agamenon, embora ferido, está vivo e goza de boa saúde! Clitemnestra deu largas, então, à sua decepção, chorando copiosamente.

Em seguida fez um gesto brusco com a mão, despedindo o arauto.
- Foi sublime! - cochichou ele, ao cruzar na saída com a escrava. - A rainha não conseguiu conter as lágrimas...!
- Então adeus, arauto, pois já não consigo conter o meu riso! - disse ela, abafando as palavras ao cobrir a boca com a mão.

Clitemnestra ficou ainda um longo tempo andando de um lado para o outro no seu quarto. Uma leve dor começara a latejar no lado direito de sua cabeça. "O desgraçado retorna...!", pensava ela, nervosamente, no seu ir e vir. "Ele, o pulha, que entregou a própria filha, minha Ifigênia, ao carrasco, espera, então, que eu o receba em meu leito novamente?"

Enquanto Clitemnestra remoia seu ódio, o reino inteiro, no entanto, regozijava-se.
- Clitemnestra, o que faremos? - perguntou-lhe Egisto, seu amante, ainda no mesmo dia. - Seu esposo deve chegar muito em breve.
- Pois bem, que chegue, então! - disse-lhe Clitemnestra, afetando uma despreocupação que não sentia. - Preparemos-lhe uma bela recepção.

- Querida, não se faça de boba! - disse Egisto, tomando-a pelo braço. -Cedo ou tarde a notícia de nosso envolvimento chegará aos ouvidos dele.
Ambos ficaram um longo tempo em silêncio remoendo suas preocupações. Egisto esquadrinhava as paredes em busca de uma solução, quando Clitemnestra tornou a falar; seu tom de voz agora era sério e tinha um fundo de perversidade.

- Uma bela recepção...
- De novo essa bobagem? - disse Egisto, perdendo de vez a paciência. -Vamos, não temos tempo para graças!
- Não compreendeu ainda, seu tolo? - disse a rainha, abraçando-se ao usurpador.
- Não está pensando em... - disse Egisto, feliz ao ver que sua amante compreendera logo o que era preciso ser feito. Afinal, ele tinha na história de sua família uma longa série de atos infames, que remontavam até Tântalo, seu remoto e cruel ancestral.

- Calemos a palavra... As paredes costumam criar orelhas quando ela soa de maneira inadvertida! - disse ela, acariciando o peito nu do amante.
Egisto sorriu, satisfeito. Depois, arrancando o manto de Clitemnestra, levou-a até o leito.
Finalmente havia chegado o dia em que Agamenon pisaria novamente o solo de sua pátria. O povo, exaltado, enfeitara ruas e praças para recebê-lo. Por toda parte reinava a alegria mais franca. No palácio da rainha, no entanto, as coisas não se passavam exatamente assim:

Clitemnestra, tendo passado a semana inteira que antecedera a chegada de seu esposo muito nervosa, havia brigado com seu amante e ofendido-o seriamente. Ela ainda podia sentir no rosto a força da mão direita de Egisto.

"Idiota que fui, também!", pensava ela, tentando dar alguma razão ao gesto tresloucado de Egisto. "Chamá-lo justamente de 'filho do incesto', lembrá-lo que era filho de Tiestes e da própria filha, Pelópia, a única injúria que verdadeiramente o põe louco...!"
- Ora, basta! - disse ela, abanando a cabeça, como quem afasta uma mosca importuna.
- Esqueçamos isto, por enquanto, e retomemos nossa lição...
Rumou então para diante do grande espelho que ornamentava seu quarto. Ali, perfilada, recomeçou seus exercícios de cinismo, que dias antes uma alcoviteira escolada lhe havia ensinado.

- Pratique sempre, minha querida - dissera a megera, com seu peculiar esfregar de mãos aduncas. - Pratique dia e noite!
- "Aga... menon! O... ! Benditos sejam os deuses... !" - disse ela, enquanto fazia um esforço tremendo para estender ao máximo a comissura dos lábios.
"Não esqueça da pausa", insistira a conselheira: "Aga... menon!" Nesse instante, já quase noite, Agamenon finalmente chegou ao palácio. Estava todo suado da viagem e dos festejos em praça pública.
Clitemnestra, à porta, o aguardava de braços abertos. No seu rosto luzia aquele mesmo sorriso que uma semana de árduo treinamento lhe ensinara a improvisar.

- Aga... menon! O... Benditos sejam os deuses! - disse ela, à perfeição. Agamenon abraçou, perdido de felicidade, a esposa, sob o olhar comovido de todos. Depois ambos foram para dentro do palácio. Junto dele vinha uma mulher de estranho aspecto, que arregalou os olhos de maneira medonha assim que os pôs sobre Clitemnestra.

- Quem é esta mulher, com ar de louca, que trazes contigo? - perguntou a rainha ao esposo, tão logo ficaram a sós em seu quarto.
- É Cassandra, filha do falecido rei de Tróia - disse Agamenon, meio sem jeito. - Será, doravante, nossa escrava.
Nesse instante, porém, o rei avistara por uma fenda do manto um pedaço do seio branco da esposa, e isto foi o bastante para que começasse a arfar descontroladamente.
- Clitemnestra... - resfolegou o rei, despejando nas faces da rainha o seu bafo quente.

Em seguida agarrou-a com os modos rudes da época, despiu-a brutalmente e consumou ali mesmo, de maneira cega e egoísta, o ato de amor há tanto tempo protelado.
- Agamenon! Acalme-se! - dissera Clitemnestra, tentando em vão aplacar os furores de Afrodite que o dominavam por inteiro.
Após saciar seu desejo por várias vezes, Agamenon abandonou aquele corpo e estendeu-se ao largo do leito para recuperar o fôlego. Clitemnestra, por sua vez, sentindo o suor daquele homem grudado ao seu corpo, virou-se para ele e lhe disse, com a mais descuidada das vozes:

- Querido, não quer agora tomar um banho revigorante para recuperar as forças?
Lembre que ainda temos um longo banquete pela frente!
- Banquete? - perguntou Agamenon, de olhos fechados e quase adormecido.
- Sim, meu esposo - disse Clitemnestra, voltando à carga. - Vamos comer e beber até que o flamante carro de Apoio surja outra vez no horizonte.
Aquelas duas palavras, comer e beber, haviam despertado outra vez os vigorosos instintos de Agamenon. Lançando para fora do leito suas pernas de músculos tesos como cordas. Agamenon estava logo em pé, outra vez.

- Tem razão, não podemos frustrar nossos convidados - disse ele, novamente disposto.
Clitemnestra ordenou, então, que Cassandra, a nova escrava, preparasse um banho para Agamenon. Este, reanimado, encaminhou-se para a sala de banhos que ficava no fim do corredor.
Neste mesmo instante Clitemnestra, ainda nua, correu ligeiro até aquela mesma porta secreta que dava acesso ao seu quarto e bateu repetidas vezes. Logo surgiu por uma fresta a cabeça sinistramente alerta de Egisto. Após vasculhar com os olhos a peça inteira, abriu a porta mais um pouco e por ela passou, espremendo o seu corpo robusto.

- Vamos, entre logo! - ciciou sua amante.
- Por que permitiu tantas vezes... ? - foi logo dizendo Egisto, todo alterado, com as unhas ainda enterradas nas palmas das mãos.
- Pssssiu! Que estás dizendo, louco? - disse Clitemnestra, baixinho. Egisto ignorou-a e, após colar seus lábios úmidos aos ombros da amante, por alguns instantes, arremessou-a em seguida ao leito, com fúria.
- Puá! - fez ele, cuspindo para o lado. - Sua pele fede à saliva podre do cão!
- Cale a boca, idiota! - falou Clitemnestra. - Quer botar tudo a perder com seus ciúmes ridículos?

- Chamas de "ciúme ridículo" ter de assistir à mulher amada ser lambida por um bode asqueroso, feito um osso ordinário?

Algo disse à Clitemnestra que era hora de devolver aquela bofetada anterior, e ela não hesitou em aproveitar a ocasião.
- Veja como usa as suas comparações imundas para comigo! - disse, aplicando às barbas de Egisto uma sonora bofetada.
- Chamou, minha senhora? - disse Cassandra, a nova escrava, entrando abruptamente, alguns segundos depois do tempestuoso idílio.

- Sim, venha até aqui - disse Clitemnestra, cujos olhos despediam faíscas. Cassandra aproximou-se e, tão logo esteve ao pé da rainha, recebeu desta, também, outra sonora bofetada.
- Isto é para você aprender, desde já, a não entrar em meus aposentos sem antes se anunciar! - disse Clitemnestra, escarlate de fúria. - Já para fora!
Para sorte do casal de amantes, Egisto, prudentemente, ocultara-se antes da entrada da infeliz Cassandra. Entretanto, também fora tudo em vão, pois a nova escrava já sabia do romance que ambos mantinham, mesmo antes de chegar à terra de Agamenon, agraciada que fora pelos deuses com o dom da profecia. Por várias vezes havia alertado inutilmente o rei, durante a viagem de retorno a Argos, que sua mulher o traía e que um dia haveria de tramar a sua morte, além da dela própria, Cassandra.

Infelizmente não pudera prever que isto se daria tão em breve.
- Vamos de uma vez! - disse Clitemnestra ao amante, que reaparecera como num passe de mágica, esquecido já da agressão.

Os dois puseram-se, então, porta afora. Egisto tomara uma rede de grossa e intrincada trama e a levava enrolada no braço, enquanto Clitemnestra segurava atrás das costas um pequeno machado de dois gumes.
Assim, pé ante pé e encostados à parede, atravessaram o corredor parcamente iluminado por um archote quase exaurido, que ainda bruxuleava, envolto na penumbra.

Escutaram a voz de Agamenon, que parecia devanear sob a água tépida do banho:
- A sombra do Hades... Silêncio, Cassandra... Um crime hediondo... Silêncio...
Sua barba brilhava, orvalhada pelos respingos da água, enquanto mais acima seus olhos cerrados moviam-se celeremente por baixo das pálpebras.
- Ele sonha...! - disse Egisto, com os lábios colados à orelha de Clitemnestra.

- Vamos acordá-lo, então! - replicou em surdina a mulher, a quem a piedade não consegue afrouxar um único músculo. Depois, erguendo a voz, exclamou, ainda no corredor:
- Agamenon, meu marido! Apresse seu banho que seus convidados lhe esperam!
O marido de Clitemnestra, subitamente desperto, mergulha então a cabeça mais uma vez no fundo da tina. Alguns segundos depois a retira, dando um longo hausto que espalha uma chuva de gotas d'água por toda a peça. Em seguida, põe-se em pé, procurando manter o equilíbrio. O ruído intenso da água que escorre através dos espessos pêlos de todo o seu corpo, indo desaguar na tina quase repleta, dá a impressão de uma chuva abundante que cai naquela peça.
- Chegou a hora, Egisto... VAI! - ordena Clitemnestra a seu amante.
Egisto pula para dentro da peça e lança sobre Agamenon a rede de fios solidamente tecidos.

- O que é isto... ? - exclama Agamenon, debatendo-se feito um inseto na teia. Nesse mesmo instante Clitemnestra, num salto de felina, põe-se às costas do marido e exclama, erguendo ao alto o machado recoberto de crostas de ferrugem:

- Para trás, Egisto! - diz ela, afastando seu cúmplice.
O machado desce velozmente, arrancando do ar um zunido. Clitemnestra, entretanto, erra o alvo, acertando, em vez da cabeça de Agamenon, a sua clavícula direita. O rei lança um grito terrível e dobra um joelho, envolto sempre nas malhas da rede.
- Isto, celerado, é por ter me arrebatado Ifigênia! - diz Clitemnestra, num tom de voz claro o bastante para ser compreendido.
Com um puxão, Clitemnestra arranca das carnes de Agamenon o ferro imundo e, erguendo-o ao alto outra vez, desce-o em novo golpe feroz. Desta vez obtém sucesso, acertando a cabeça do esposo, que se fende como uma romã.

- Veja, Egisto! - diz ela, tomada por um furor quase báquico. - Com que profusão seu sangue negro verte pelo chão até esquentar os meus pés.
Agamenon já estertora, quando Clitemnestra aplica-lhe um terceiro e definitivo golpe sobre o peito.
Tudo consumado, Clitemnestra e o amante já se preparam para deixar o local do crime quando Cassandra, a filha de Príamo, surge à sua frente. Sua boca espuma e seus olhos esgazeados rebrilham sob a luz tremida do archote, que quase se apagara pela violência dos arremessos do machado.

- Assassina... Assassina... Oh, lugar de maldição! - diz Cassandra, horrorizada.
- Eis, então, a cadela que o porco trouxe de Tróia maldita, para refocilarem juntos! - exclama Clitemnestra, segurando ainda o cabo do machado, agora completamente molhado do sangue que cai da lâmina.
Ato contínuo, desce a arma sobre a indefesa mulher, que cai morta ao chão.

- Vamos embora, Clitemnestra! - diz Egisto, o assassino de Atreu, que desta vez apenas assistira à consumação de mais uma infâmia.
Quando ambos chegam, enfim, ao quarto de Clitemnestra, a rainha abraça-se finalmente a Egisto.
- Está feito, querido! - diz ela, cujos olhos luzem de satisfação.
- Sim, minha amada! - responde Egisto, enterrando os dedos nos cabelos da rainha.
- "Sim, minha cúmplice"! - diz ela, pedindo com os olhos. - Vamos, repita! Egisto reluta, a princípio, mas finalmente, rendido ao olhar de Clitemnestra, obedece:
- Sim, minha cúmplice. Sim, minha cúmplice adorada!
- Logo, meu amado Egisto, você será feito senhor de todo este reino diz ela, acariciando o largo peito do amante com as mãos que empunharam a arma fatal.
Acostumado, porém, ao odor do sangue das suas vítimas, o ardente Egisto sequer percebe que é seu peito, agora, que está todo manchado de um vermelho escuro e sinistro.


O rapto de Helena

- Helena... Helena... Helena...!

Dia após dia, o jovem Páris, filho de Príamo, rei de Tróia, sussurra este nome, com a mesma persistência de um antigo coro trágico.

Este nome, na verdade, não lhe sai da cabeça desde o dia em que concedera a Afrodite o pomo da Discórdia, recebendo desta, em troca, a promessa de que seria amado pela mulher mais bela da face da Terra.

- Ela será sua, eu lhe garanto! - lhe dissera a deusa com toda a força de sua sedutora argumentação. - Por você ela deixará marido, posição e riqueza. Que outra prova maior de amor poderia exigir um mortal?

Páris está imerso nestes pensamentos quando ouve um arauto declarar a seu pai que Menelau, rei de Esparta, está prestes a chegar a Tróia.

- Menelau chegará? - exclama ele, involuntariamente.

- Sim, meu filho - diz Príamo, voltando-se para ele. - O oráculo de Delfos determinou que ele venha até nós para reaver os ossos de dois de seus soldados que aqui pereceram durante a expedição que Hércules fez à nossa pátria.

A notícia é importante demais para que Páris possa conter sua curiosidade.

- Ele virá sozinho, meu pai? - diz o jovem, fixando o grande tapete sob os seus pés.

Ali está representada Europa, nua e aflita, que Zeus, sob a forma de um magnífico touro branco, rapta virilmente para dentro do mar.

- Trará apenas uma pequena comitiva - diz simplesmente o rei.

Páris compreende então que não será ainda desta vez que saciará a sede dos seus olhos. Mas já será alguma coisa poder conhecer o homem que o destino investiu na condição de rival.

No dia seguinte chega o visitante com sua comitiva. O rei troiano o recebe com toda a pompa. Junto ao anfitrião estão seus filhos, Heitor, Deífobo e Páris. Este último não pode deixar de arregalar os olhos quando é finalmente apresentado a Menelau. O jovem sente que a palma de sua mão está suada quando o cumprimenta.

- Um filho que, sem dúvida, faz jus ao próprio pai, ó Príamo audaz! - diz Menelau, cujas palavras são sempre sinceras.

Páris abaixa a cabeça, um tanto encabulado, pois sabe que tem diante de si o homem que em breve deverá atraiçoar. Enquanto Menelau conversa com seu pai, Páris estuda-lhe melhor as feições, detendo-se em seus olhos de pupilas cristalinamente azuis. "Talvez haja nelas um pálido reflexo da efígie da mulher que um dia será minha!", pensa o rapaz, com a ingenuidade própria da juventude.

Durante os próximos dias Páris faz-se, então, anfitrião perfeito do rei espartano, ajudando-o a encontrar rapidamente os ossos dos seus soldados.

- Se não fosse a sua ajuda, hospitaleiro filho de Príamo - diz-lhe, ao fim da visita, Menelau -, não sei se teria obtido sucesso em minha missão. Por isso quero que você vá até o meu reino o mais breve possível, para que eu possa retribuir à altura o tratamento que me dispensou.

Essa oportunidade não tarda muito, pois algum tempo depois Príamo organiza uma expedição com destino à terra de Menelau, liderada por seu primo Enéias.

- Páris - diz o rei troiano -, quero que vá com meu primo a Esparta retribuir a visita que Menelau nos fez. Aproveite também a ocasião para trazer consigo minha irmã Hesíone, que lá se encontra há muitos anos.

Finalmente a ocasião se apresenta! Páris sente suas pernas vacilarem, e é a custo que as palavras de assentimento saem de sua boca:

- A sua vontade, meu pai, será sempre o leme dos meus atos.

Alguns meses depois, Páris, juntamente com Enéias, está prestes a partir. Do alto das naves, ambos comandam os últimos preparativos. Mas embora toda a balbúrdia do embarque, não é ela o bastante para impedir que se faça ouvir uma voz feminina que brada em terra, com todas as suas forças:

- Páris, meu irmão! Desista desta funesta expedição, pois ela será primeiro passo de nossa ruína!

- Vejam só! - diz um dos membros da expedição. - É Cassandra, a profetisa que os deuses privaram do dom da persuasão.

Um grasnar insolente de risos espalha-se no ar como um bando de aves barulhentas.

Porém é logo reduzido ao silêncio pela voz poderosa de Páris.

- Silêncio, rufiões! Partamos logo de uma vez! - diz o filho de Príamo, do alto da proa de sua embarcação. - Quanto a você, minha irmã, serene sua alma, pois são bons ventos que nos levam até a pátria do generoso Menelau.

E, sem mais dizer, partem todos rumo a Esparta.

Alguns dias depois, na terra de Menelau, todos já estão na expectativa da chegada do filho de Príamo. O rei já concluiu todos os preparativos para receber à perfeição os seus hóspedes.

- Helena querida - diz ele à sua amada esposa -, é preciso que os recebamos como nunca antes visitante algum foi recebido. Façamos com que sua estada em nossa pátria seja lembrada ainda por muitos séculos como exemplo de cortesia e amizade.

Helena recolhe-se celeremente aos seus aposentos.

- Preciso, então, fazer-me ainda mais bela, se tal será a importância de nosso hóspede. Pois o que dirão da esposa de Menelau, se não sabe estar à altura da cortesia de seu marido?

Assim pensa Helena, desnudando-se inteira diante do grande espelho que enfeita seu quarto. Depois de admirar um quadro que somente o seu marido Menelau tem o privilégio de contemplar, faz com que uma delicada esponja percorra suas formas perfeitas, embebendo sua pele de um aromático perfume. Isto feito, veste seus melhores trajes e enfeita-se com as jóias mais faiscantes que olho humano algum ousou contemplar.

Agora Helena está sentada, enquanto compõe sua maravilhosa cabeleira, cujos fios parecem ter sido descosidos da própria Noite e tecidos outra vez sobre a sua encantadora cabeça.

Abaixo deles fulguram duas esmeraldas, que despedem o brilho intenso de duas estrelas, e logo em seguida, abrigada sob a arcada perfeita de um nariz aquilino, está harmoniosamente posta uma boca úmida, de lábios naturalmente escarlates.

Algumas horas mais tarde Menelau manda que a chamem, pois os visitantes já se aproximam do porto com seus imponentes barcos.

- Importa muito, minha amada, que os recebamos tão logo pisem o solo de nossa pátria - diz-lhe o esposo, que enverga seu traje mais esplêndido.

O cais está todo embandeirado. Músicos e povo estão misturados aos membros das melhores famílias. E adiante de todos está o casal real, Menelau e Helena.

- Eis que chegam, cara Helena! - diz o rei, cujos olhos luzem de expectativa. A rainha, contudo, apesar de compartilhar da curiosidade de seu marido, está um tanto confusa com o alarido que a plebe promove ao redor, tirando-lhe a vista dos navios. Volta-se, então, para ver no rosto de seu esposo a satisfação que toda aquela alegre balbúrdia lhe traz. "Menelau é de fato um homem nobre!", pensa ela, enquanto admira as feições radiantes do rei. Envolvida, porém, com todos aqueles acontecimentos, não percebe que oculto atrás de uma das colunas do ancoradouro

está Eros, o filho de Afrodite. Ele esquadrinha atentamente as menores reações da esplendorosa rainha.

- Se não fossem as ordens expressas de minha mãe, eu a faria apaixonar-se por mim, divina Helena! - diz o irrequieto arqueiro, também fascinado pela beleza daquela mortal.

Nesse instante os visitantes desembarcam e se aproximam do local onde Menelau e sua esposa estão. Contudo, antes mesmo que lá cheguem, os olhos ansiosos de Páris já encontraram os olhos serenos de Helena. A claridade insolente do dia que a cerca desaparece, então, diante do fulgor quase sobrenaturalmente divino que emana de si.

Páris a reconhece imediatamente como a mulher de sua vida.

"Eis Helena!", exclama interiormente o recém-chegado. "A mulher que povoou todos os meus sonhos é, então, infinitamente mais bela do que eu esperava!"

De repente, porém, ele descobre que tem diante de si o seu anfitrião.

- É com prazer infinito que meus olhos contemplam outra vez você, jovem filho de Príamo! - diz Menelau, estendendo-lhe generosamente os dois sólidos braços.

Páris, desconcertado, retribui as palavras do rei com um agradecimento improvisado. Enquanto isto, Helena aguarda a sua vez de cumprimentar o jovem, que até então não lhe provocara mais que uma natural admiração. Entretanto, o deus do amor já assesta a sua pontaria para o coração da rainha.

- Conhece já o amor, encantadora rainha - diz Eros, esticando ao máximo a corda de seu certeiro arco. - Chegou, porém, a hora de conhecer a quintessência do amor!

Tão logo os olhos de Helena pousam nos olhos de Páris, uma flecha certeira que leva inscrita a palavra "paixão" vara implacavelmente o seu coração.

"Afrodite soberana, o que sinto... ?", pensa Helena, aturdida. Uma chama ardente sobe do seu peito e tinge de vermelho suas faces quando seus olhos fitam pela primeira vez os olhos chispantes de Páris.

- Uma honra nunca imaginada me chega agora como uma dádiva dos deuses: a de poder contemplar neste instante a mais sublime rainha de quantas a Hélade inteira pôde gerar...!

- diz Páris, curvando sua cabeça, num estratagema sutil que lhe permite recobrar um pouco o autocontrole.

"Oh, Zeus supremo! Como ocultar doravante o amor divino que brilha em meus olhos,

sem que mil outros olhos profanos o devassem?", pergunta-se Páris, aflitamente feliz com este novo e doce dilema.

Helena, a seu turno, está como que imersa num sonho e, sentindo agora que suas cores lhe fogem do rosto, abaixa também a cabeça. Quando a ergue novamente está misteriosamente sentada numa grande mesa, em algum lugar que lhe parece vagamente familiar. Reconhece a voz de seu esposo, que parece mencionar o seu nome. Quando se volta assustada para o lado, porém, quem seus olhos encontram é aquele mesmo jovem que a atordoara. Sim, ele está sentado entre ela e Menelau, que entretém uma conversa animada com Enéias, o companheiro de viagem que Páris trouxe consigo de Tróia.

- Uma viagem é sempre um enigma, meu caro rei - diz uma voz indistinta. Como quem desperta de um sonho, Helena vê rostos vagos começarem a se desenhar à sua frente.

Comensais e glutões de toda espécie, que interesses políticos obrigam o soberano a manter em sua mesa, ali estão alegremente refestelados, erguendo brindes diversos, mas que no fundo são sempre os mesmos, pensando: "Felizes de nós, que privamos da mesa do rei!". O resto do banquete passa-se como num sonho acordado, e é a custo que Helena consegue voltar seu rosto para o lado, pois sabe que encontrará aqueles mesmos olhos que a enfeitiçaram. No entanto, pode sentir o tempo todo aquela presença viril, e cada vez que a voz de Páris soa é como se fosse dirigida a ela própria.

Ao final da recepção, Helena está exausta e vai direto para os seus aposentos.

- Então, o que achou de nossos convidados? - pergunta-lhe Menelau, enquanto observa as escravas despirem-na.

- Enéias parece ser um homem muito determinado - diz a rainha, com um ar distraído.

- E o que achou do filho de Príamo? - retorna Menelau.

- Não reparei... Talvez um tanto inexpressivo - gagueja Helena, deitando-se logo em seguida.

Os dias passam, e a rainha faz de tudo para não cruzar com o forasteiro, até que um dia as Moiras decidem armar-lhe uma cilada, que porá por terra todas as suas defesas.

- Helena querida, tenho de partir imediatamente - diz o seu esposo numa manhã.

- O que diz? - exclama a bela Helena, ao mesmo tempo apreensiva e involuntariamente feliz.

- Catreu, meu avô, faleceu. Devo partir ainda hoje para assistir aos seus funerais.

Em seguida ele a abraça fortemente.

- Confio que saberá entreter os nossos hóspedes de tal modo que não sintam a minha ausência!

- Volte logo, meu marido - responde Helena, sabedora de que, se assim não for, dificilmente poderá resistir à terrível tentação que se avizinha.

Antes do final do dia o rei já singra os mares em direção a Creta, enquanto a noite desce seu manto sobre Esparta. Helena está sozinha no palácio. Os dedos de suas mãos entrelaçam-se convulsamente, enquanto ela observa da janela um céu carregado de nuvens. De repente, sente que às suas costas alguém se aproxima. Ela não precisa voltar-se para saber quem é.

- Você! - exclama ela, fingindo-se surpresa ao fitar o rosto de Páris.

- Peço licença, amável rainha, mas preciso muito lhe falar - diz o jovem, alterado.

- A hora talvez não seja a mais propícia, jovem imprudente... - diz ela, com um meio sorriso, sem saber se leva a mal a pequena audácia do estrangeiro.

Ele, no entanto, não retribui o sorriso.

- Imprudência... Talvez seja isto mesmo, encantadora rainha. Os fados me obrigam agora a fazer uso desta perigosa palavra.

- Que diz? - fala ela, retomando sua apreensão.

- Não, imprudência não... Ousadia, talvez seja o termo apropriado, pois sem ela o amor será sempre uma palavra vã!

Helena põe-se em pé, retrocedendo alguns passos.

- Estrangeiro, você abusou dos dons de Baco? - diz ela.

- Não, divina rainha... Bebi foi a beleza de seus encantos... E esta embriaguez está prestes a me levar ao último extremo da ousadia e, quem sabe, mesmo, da perversidade.

Helena reconhece, então, que chegou a hora tão temida.

- Vamos, procure se acalmar- diz ela, mais para si mesma do que para ele.

- Deixe-me falar-lhe - diz ele, surdo a tudo e avançando na direção da rainha. Helena baixa seus olhos, corando terrivelmente. Páris, a seu turno, percorre com os olhos todo o aposento.

- O que procura? - diz Helena, ao erguer novamente a cabeça.

- Não procuro, bela Helena... Eu temo... - diz ele, enigmaticamente.

- Não entendo... - sussurra a rainha, negaceando levemente a cabeça.

- Oh, como temo... - diz o jovem com o rosto aceso. - Temo os olhos de todos! Eu os vejo por toda a parte, me observando, me inquirindo, me espionando...

A rainha está agora aturdida, e sua mão cobre seu rosto. De repente, porém, ela sente que algo a afasta num brusco repelão. Por um breve instante enfurece-se com o visitante, até descobrir que não fora ninguém, senão ela mesma, quem afastara a própria mão. Ao mesmo tempo algo dentro dela a obriga a fixar as feições daquele homem.

- São meus olhos, jovem Páris... São meus próprios olhos, feitos em mil, que incessantemente lhe buscam! - diz, enquanto seus braços descaem lentamente, ao longo do corpo.

- Então... sente o mesmo que eu? - sussurra ele, tentando abafar a custo o seu entusiasmo.

Um silêncio afirmativo ilumina os olhos de Helena. Então ele acrescenta, num jato:

- Helena, Helena... Só haverá esta oportunidade, Helena amada... Durante alguns instantes ambos se estudam avidamente. Então, bruscamente, as bocas de ambos colam-se num sôfrego beijo.

- Sim... eu te amo... Páris adorado... - diz ela, rendida de vez àquele irreprimível desejo. Depois de trocarem mil beijos, Páris toma a cabeça da rainha em suas mãos.

- Helena, adorada! Venha comigo para Tróia! - diz, inflamado.

- Não posso! - exclama ela, tentando desvencilhar-se daquelas mãos firmes. Mas ela sabe que seu destino já está selado.

- Serás, doravante, Helena de Tróia! - diz Páris, feliz, pois já leu nos olhos da amada que nada a impedirá de unir-se a dele.

Durante toda a noite fazem-se, então, os preparativos para a fuga. Helena, quase histérica, tem a cabeça em fogo.

- Afrodite suprema, proteja-me da fúria de Menelau! - diz ela, enquanto encaixota seus pertences com a ajuda de suas escravas, que também irão consigo.

- Levemos também os tesouros do reino! - exclama Páris, num gesto de tresloucado entusiasmo que Helena a princípio refuta. Porém, cedendo logo às instâncias de seu amante, reconsidera.

- Um crime... dois crimes... Ora, avante! - exclama a bela Helena, num delírio febril.

Assim, antes que Apolo rompa os portões do dia com seus cavalos de fogo, partem de Esparta os navios, levando consigo as riquezas do reino e a maior delas, Helena. A rainha sabe que deixa tudo para trás, em nome de uma paixão. Mas agora que deu o primeiro e fatal passo está disposta a tudo.

- Seja o que Zeus, meu pai, e Afrodite protetora determinarem... - diz ela, aninhada nos braços de Páris, um Páris mais forte, que tomou agora consciência do seu destino.

Enquanto isto, Cassandra, a profetisa cuja voz ninguém ouve, está caída diante dos degraus do templo de Zeus, em Tróia. Chove, e suas vestes estão em tiras. A cinza que recobre a sua cabeça lhe escorre pelo rosto, dando-lhe o aspecto de uma louca.

- Ai de ti, Tróia infeliz! - exclama ela, com os lábios colados nos degraus frios da escada. - Eis que se aproxima a hora de sua perdição!

Um riso sarcástico ainda fica pairando longo tempo no ar, depois que o último ébrio passa por ela, aos tropeços.


O Sacrifício de Ifigência

O cais de um porto grego. Ao fundo estão as efígies gigantescas de diversos navios, compondo uma esquadra. Há um grande ir e vir de soldados e ruídos de armas que se entrechocam involuntariamente. Calcas, o adivinho do exército, está inquieto, observando as velas das naus, que estão caídas e perfeitamente imóveis. Ele as observa, preocupado, por um bom tempo, indo e vindo lentamente, enquanto esbarra nos soldados. Neste instante entram Agamenon e Ulisses, fardados para a guerra.
                                                               
Calcas, avançando para ambos: - Nobre comandante! Os deuses dos ventos não parecem dispostos a nos auxiliar em nossa campanha. Veja como as velas de nossas naus colam-se aos mastros, como pendões inúteis.

Agamenon, encarando o adivinho com firmeza, lhe diz rudemente - Arúspice do óbvio, o que mais tem a nos dizer que já não o saibamos à exaustão?

Calcas baixa a cabeça, ocultando o despeito - Senhor, já consultei nosso oráculo, e ele sempre me repete o mesmo...

Um silêncio sobrevém por alguns instantes, até que o comandante o quebra.

Agamenon - Fica mudo... é isto, adivinho do silêncio?

Espocam alguns risos de pessoas que estão em torno.

Ulisses- Vamos, Calcas, não pode encadear uma frase na outra sem enfadar a alma de seus ouvintes com suas pausas aborrecidas?

Calcas, erguendo a cabeça - O que os fados têm a lhe dizer, valoroso capitão, talvez não sejam palavras que tragam muita alegria à sua alma.

Agamenon - Qualquer coisa me alegrará mais que este seu ar de mistério enfadonho. Vamos, diga logo o que suas artes mágicas disseram!

Calcas, cobrindo o rosto com o manto - Oh, mas são negras palavras...

Agamenon, aproximando seu rosto do adivinho - Negro ficará seu olho direito, postergador maldito! Vamos, diga o que tem a dizer ou retire já da minha presença a sua figura exasperante!

Calcas, tomando coragem - Comandante... O oráculo é categórico em afirmar que tal retardo dos ventos não tem outra causa senão a sua própria pessoal

Calcas, ainda, à parte - Pronto! Está dito tudo!

Ulisses, lançando o manto para trás - Agamenon culpado pela ausência de ventos, que há dois anos nos retém neste porto de Áulis? E por que razão os deuses poriam empecilho à partida dele e de nossos exércitos, se causa mais nobre e mais justa nunca houve no mundo?

Agamenon, bradando - Um cão traiçoeiro, de nome Páris, vem até a pátria de meu irmão Menelau, rapta-lhe a mulher, a mais bela de quantas houve em toda a Hélade, levando-lhe ainda os seus tesouros. Eu, seu irmão, decido, então, empreender junto com ele uma expedição até Tróia maldita para resgatar a sua esposa e a sua honra. Que há nisto tudo, adivinho insolente, que me indisponha contra qualquer divindade?

Algumas vozes levantam-se entre os ouvintes, que agora se apinham em volta dos três, ouvindo-se claramente esta frase - Basta! Voltemos para casa, pois não há mais dúvidas de que os deuses abominam tal expedição!

Agamenon, voltando-se para a soldadesca - Silêncio, escória! Se temos de levar tais soldados, que a qualquer pretexto renunciam à sua obrigação, vamos bem arranjados!

Ulisses, dispersando a multidão - Eia, canalha! Esta conversa não é para orelhas de asno!

Agamenon, pegando Calcas pelos ombros - Vamos, adivinho de maus agouros, diga tudo o que ouviu do oráculo.

Calcas, de espinha ereta, sentindo-se agora importante - Nobre comandante! Éos de róseos dedos ainda não havia surgido de todo no negro empíreo, quando me aproximei naquele dia, repleto de maus pressentimentos, diante do oráculo...

Agamenon, interrompendo-o - Esqueça a Éos maldita e ponha o sol bem no alto de seu relato, falador incansável, se não quiser adiar para sempre o seu palavreado!

Calcas, algo frustrado - Está bem, comandante, está bem. O oráculo me disse exatamente isto. - Mudando o tom da voz para um tom gutural, mas à sério - "Eis que os ventos cessarão de soprar, até que o presunçoso guerreiro se prosterne diante de Artemis sublime!"

Agamenon - O "presunçoso guerreiro" sou eu, suponho?

Calcas, encabulalado - Temo que sim, audaz comandante...

Agamenon - Adiante, debulhador de enigmas!

Calcas, retomando o fio - A deusa Artemis está enfurecida porque o senhor lhe fez há muitos anos uma promessa e está decidida a não aceitar mais postergações no seu cumprimento.

Ulisses, intervindo - Promessa? Que promessa?

Agamenon empalidece enquanto ambos aguardam a resposta.

Calcas - Outrora você prometeu à Artemis valorosa que lhe sacrificaria o mais belo ser que nascesse em seu reino...

Agamenon larga Calcas e afasta-se dele e de Ulisses, a passos lentos. Após alguns instantes de silêncio, volta-se para os companheiros e diz, com a voz alquebrada - Sim, é verdade, Ulisses fiel... Há muitos anos fiz tal promessa insensata.

Calcas - A deusa determinou que esta expedição só deixará este porto quando promessa for cumprida integralmente!

Ulisses - Mas quem é esse ser infeliz que deverá passar por tão terrível ordálio?

Calcas, erguendo a voz, como quem finalmente pode revelar um terrível segredo - A vítima não há de ser outra senão Ifigênia, a filha de Agamenon!

Agamenon faz menção de voltar a discutir com Calcas, mas desiste. Depois diz a Ulisses - Clitemnestra, minha esposa, jamais aceitará tal solução!

Um rebuliço desperta a atenção dos três: é Menelau quem chega, rodeado de seus generais.

Agamenon, adiantando-se para ele - Menelau, meu irmão!

Os dois imãos abraçam-se efusivamente.

Menelau- Agamenon, a situação está se tornando insuportável! A peste já começa a grassar entre os soldados!

Ulisses- Temos, também, a peste entre nós?

Menelau- Sim, já perdemos dezenas de homens. - Vira-se, então, para o adivinho - Calcas, já falou com meu irmão sobre o que precisa ser feito?

Calcas- Sim, comandante, mas receio que essa decisão custe mais do que possamos lhe exigir...

Agamenon, procurando justificar-se perante o irmão - Menelau, Artemis está tomada pela ira e exige que lhe dê minha filha, sangue do meu sangue, para que deixe de nos perseguir!

Menelau - É desnecessário repetir a história, Calcas já me contou tudo. Vim atrás de você para saber que decisão tomará quanto a isto.

Agamenon - Bem sei dos deveres que me prendem à deusa, embora a dor que me dilacera o peito. No entanto, há Clitemnestra, minha esposa. Ela jamais aceitará ver-lhe tirada dos braços a própria filha, que é a luz dos seus olhos!

Menelau - Permitirá, então, que as choradeiras de uma mulher provoquem a ruína de seu irmão e de sua pátria? É isto, caro irmão?

Agamenon silencia. Depois de alguns instantes, acabrunhado, resmunga: Se Clitemnestra concordar, acatarei a ordem da deusa.

Menelau, enfurecendo-se - Você se recusa a obedecer à deusa, isto é que é!

Um dos generais exclama: - Elejamos um novo comandante, ó Menelau!

Outras vozes aduzem:

Primeira voz- Isto! Isto! Um novo comandante!

Segunda voz- Morreremos todos da peste neste porto maldito!

Terceira voz- Cumpramos o que a deusa exige de nós!

Quarta voz- Que Palamedes seja, então, nosso novo comandante!

Ulisses, fazendo menção de se retirar- Se Palamedes assumir o comando, não tomarei parte nesta expedição.

Menelau, tomando Ulisses pelo braço: - Espera, filho de Ítaca! Depois, voltando-se para Agamenon: - Veja, Agamenon, a obra de sua fraqueza... Seus pruridos sentimentais começam a provocar a rebelião entre nossos próprios generais! Chegou a hora de tomar uma decisão.

Ulisses, para Agamenon, tentando acalmá-lo: - Compreendo seu dilema, Agamenon.

Façamos isto, então: sua filha, bem como sua esposa, não saberá do que irá acontecer, senão no último instante, quando se fará o que a deusa exige de você.

Calcas, à parte: - Ó astuto Ulisses! Agamenon - Um estratagema?

Ulisses- Exatamente. Vamos dizer a ambas que contratamos o casamento de Ifigênia com o valoroso Aquiles. Escreve à sua esposa e diga a ela que sua filha deve vir imediatamente até nós.

Agamenon - Está bem...

Ulisses- Mas, atenção: ela deve vir sozinha.

Calcas, à parte - Filho de Laerte, você será grande!

Ulisses- Diga a Clitemnestra que seria indigno da esposa de um rei aparecer diante dos seus exércitos.

Calcas, à parte: - Bem imaginado!

Menelau - Peça para ela que faça isto o mais rápido possível, pois aguardamos apenas a celebração deste casamento para partirmos para Tróia.

Agamenon - Mas e o que dirá Aquiles disto? Não ficará aborrecido ao saber que usamos seu nome em vão?

Ulisses - Pode ser em vão uma artimanha que livrará seu irmão da ignomínia e restabelecerá a honra de sua família?

Calcas, à parte: - Ó engenho sutil!

Agamenon, depois de algum tempo: - Está bem, tudo será feito como quiserem.

Menelau estende a seu irmão uma tabuleta, onde este deverá escrever a carta. Agamenon a toma, arrasado, e começa a escrever, debaixo de um silêncio opressivo.

Cai o pano.

O interior de uma grande tenda de campanha. É noite. Agamenon está deitado de bruços e chora convulsamente. Depois volta para cima o rosto coberto pelas mãos e exclama:

Agamenon - Zeus supremo, o que foi que fiz? Minha Ifigênia adorada ofertada em

holocausto! Oh, crueldade atroz! Ter o peito rasgado pela lâmina do sacrifício! Como pude permitir tal monstruosidade?

Depois de chorar mais um pouco, no entanto, Agamenon cessa abruptamente as lágrimas. Uma idéia lhe ocorreu.

Agamenon, pondo-se em pé, de um salto: - Não, não permitirei tal coisa! Desfarei o que maus conselhos me induziram a fazer!

Imediatamente pega uma tabuleta e põe-se a escrever freneticamente.

Agamenon - Eis o que escreverei a Clitemnestra: "Minha esposa, atente bem para o que lhe digo: não mande para cá a nossa querida Ifigênia. Guardou a tabuleta num invólucro e voltou-se para a entrada da tenda. - Soldado! Venha já até aqui!

Um soldado entra rapidamente.

Agamenon - Está vendo esta mensagem?

Soldado - Sim, senhor.

Agamenon - Quero que a leve, sem mais perda de tempo, até a minha esposa. Não dê descanso a seu cavalo, nem faça pouso ou parada alguma sob pena de sua própria vida, entendeu?

Soldado- Sim, senhor.

Agamenon - Vamos, retirá-se e vá dar cumprimento à sua missão. Agamenon fica só outra vez.

Agamenon, caindo outra vez no leito: - Que os deuses protejam minha Ifigênia e façam com que esse mensageiro chegue ainda a tempo!

As luzes apagam-se. Alguns instantes depois acendem-se novamente. Agamenon está adormecido. O dia amanhece. Menelau irrompe tenda adentro segurando algo.

Menelau, em altos brados: - Vamos, levante!

Agamenon acorda, assustado: - O que foi, meu irmão?

Menelau- "Irmão"! Falta pouco para que o proíba de me chamar por este nome, asseguro!

Agamenon - Por que as flamas da ira abrasam tanto seu coração? Menelau, lançando às faces do irmão a carta que este enviara às ocultas: - Aqui está, tratante, o motivo de minha ira!

Agamenon reconhece o objeto e fica revoltado.

Agamenon - Então você ousou me espionar e interceptar uma carta que mandei à minha esposa? Com que direito o fez?

Menelau - Com mais direito que você, que torna atrás de um compromisso solene que assumiu diante de mim e de meus generais. Acaso está brincando com a minha honra? Quer espalhar o escárnio e o deboche na boca de meus soldados?

Agamenon, tornando à humildade: - Um pai não tem, então, o direito de tentar salvar sua filha da morte cruel?

Menelau - Você não tem o direito de sobrepor à honra do Estado os seus mesquinhos interesses pessoais! Ifigênia terá a honra de ofertar sua vida em prol de milhares de seus cidadãos e de restaurar a honra de sua pátria. É pouco? Não basta?

Agamenon- A mim bastaria tê-la ao meu lado, mesmo no infortúnio, pois o que é a alegria e a honra sob uma ausência terrível?

Menelau - Basta de choradeiras! Ifigênia deve chegar em breve. Devemos avisar o sacerdote para que prepare logo o local do sacrifício, diante de nossas tropas.

Menelau sai da tenda e Agamenon, prostrado pelo insucesso de sua tentativa, cai derreado ao leito.

Acampamento. A tenda de Agamenon está à direita. O céu está carregado e alguns relâmpagos clareiam esporadicamente o cenário, quase mergulhado nas trevas, iluminado apenas por alguns archotes. Um grupo chega, num grande alarido. De uma liteira desce uma moça de grande beleza.

Vigia - Comandante! Ifigênia, filha de Agamenon, já está entre nós!

Ifigênia, ansiosa: - Onde está meu pai? Morro de saudades!

Agamenon, saindo de sua tenda, às pressas: - Minha filha! Oh, minha adorada Ifigênia!

Abraça-se dramaticamente à sua bela filha, em prantos.

Ifigênia, tomando o rosto do pai em suas mãos: - Meu pai, por que choras?

Agamenon- Não sei, minha filha, não sei... Só sei que as lágrimas caem-me aos pares dos olhos.

Ifigênia - Alegre-se, meu pai, pois venho para meu casamento. Teremos uma festa, pois não?

Agamenon - Festa... Sim... Um sagrado himeneu...

Aos poucos vão chegando os demais, Menelau, Ulisses e Calças.

Ifigênia- E, então, onde está meu futuro marido?

Agamenon, quase divagando: -M-marido...?

Ifigênia, alegremente: - Sim, papai, o homem junto do qual sacrificarei a Afrodite.

Agamenon - Sacrificará...!

Ifigênia - Que tem, afinal, meu pai? Voltando-se para Menelau: - Papai está doente, meu tio?

Menelau - Seu pai esteve um pouco doente, Ifigênia... A cólera tem dizimado muitos homens por aqui.

Ifigênia, abraçando-se ao pai: - Oh, meu pai, doente! Volte para a cama, papai!

Agamenon - Estou bem, minha filha... À parte: - Minha doença chama-se remorso...

Nesse instante, Clitemnestra surge repentinamente.

Clitemnestra - Ora, que tantos abraços e lágrimas são estes, afinal, que ouço desde lá de fora do acampamento?

Todos ficam estupefatos diante da presença inesperada da esposa de Agamenon.

Agamenon, desvencilhando-se dos braços da filha: - Clitemnestra! Que faz aqui?

Clitemnestra, fazendo pouco caso do marido: - Perguntar a uma mãe o que faz junto da filha no dia do seu casamento é uma pergunta que só um toleirão como você, meu marido, poderia fazer.

Agamenon- Casamento... Casamento de quem?

Ifigênia- Da sua distração com sua desatenção, por certo!

Menelau, adiantando-se com um ar severo: - Clitemnestra, não recebeu uma carta ordenando expressamente que não viesse juntamente com sua filha Ifigênia?

Clitemnestra, olhando-o duramente: - Naturalmente que resolvi desobedecer "expressamente" uma carta néscia e atrevida como esta. Esse disparate, aliás, é bem seu, caro Menelau! Se sua própria esposa Helena não lhe deu ouvidos! - Depois, voltando-se para todos os lados: - E o noivo, o belo Aquiles, onde está? Quero ver com meus próprios olhos se é mesmo tudo aquilo que dele dizem por aí.

Um relâmpago ofusca tudo, fazendo com que Ifigênia se encolha.

Clitemnestra - Ifigênia, querida, ao que vejo seu casamento se fará sob os auspícios de Zeus tonante! Já sinto o cheiro da chuva errando no ar. Aspira profundamente.

Um trovão estoura, sacudindo tudo.

Clitemnestra - Viva! Adoro chuva! Vejam só que trovão. - Depois, voltando-se para os demais: - Onde estão as lonas de proteção? Não estão vendo que um temporal vai desabar em instantes?

De repente Clitemnestra identifica Calças, o adivinho.

Clitemnestra - Ah, aí está o decifrador de oráculos! Então, faça uso dos seus poderes e traga logo Aquiles até nós. Vamos, velho charadista, dê logo um jeito nisto!

Calças - A esposa de Agamenon há de entender que meus dons não são exatamente estes, senão os de receber e interpretar os oráculos sagrados que a mim são revelados...

Clitemnestra, dando-lhe as costas: - Adeus, charlatão. Não estou para dar ouvidos a um homem que fala mais do que a ninfa Eco!

Ifigênia, depois de deixar o pai no interior de sua tenda, reaparece em prantos.

Ifigênia, abraçando-se à mãe: - Mamãe, papai está mal! Às vezes diz que este é um momento de grande alegria, para logo em seguida cair num pranto convulso. Há algo errado com ele, deve estar muito doente!

Clitemnestra - Esqueça o seu pai. Deve estar bêbado. Eles sempre ficam nesse estado às vésperas de perder suas filhas.

Nesse instante, Aquiles, o noivo, aparece. Os demais já se retiraram.

Clitemnestra - E este, agora, quem é?

Aquiles- Perdão, não quis interrompê-las...

Clitemnestra - Esteja à vontade. - À parte: (Bonito deste jeito, bem poderia ser o eleito de minha filha!) - Sou a esposa de Agamenon e esta é minha filha, Ifigênia.

Aquiles- Encantado em conhecê-las.

Clitemnestra - E você, jovem guerreiro, quem és?

Aquiles- Sou Aquiles, filho de Peleu e Tétis.

Clitemnestra, eufórica: - Ora, então, o que achou de sua noiva?

Aquiles- Perdão, senhora, mas não entendo suas palavras.

Ifigênia - Mamãe, o que está havendo, afinal?

Clitemnestra- O que está havendo é que ou todos os homens deste acampamento enlouqueceram ou estão bêbados como a burra de Sileno!

Ifigênia, para Aquiles: - Eu sou a mulher que meu pai resolveu lhe dar por esposa.

Aquiles, se irritando: - Perdão, mais uma vez, bela jovem, mas nada sei de tal casamento. Devem ter-lhes feito uma burla.

Ifigênia oculta o rosto no ombro de sua mãe.

Clitemnestra, tornando-se repentinamente séria: - Escute aqui, rapaz, que espécie de tramoia estão todos armando para cima de minha filha? Vamos, conte logo o que sabe!

Aquiles- Estou nisto tão inocente quanto meus netos que estão por vir, minha senhora.

Clitemnestra -Está bem, meu jovem. Terei de lançar mão, então, de meus meios! Por Afrodite sagrada que vou descobrir o que esses malditos tramam contra minha filha.

Clitemnestra olha para os lados e vê um de seus serviçais. Faz-lhe um sinal para que venha até ela.

Clitemnestra- Conheço você. É o serviçal direto de meu esposo, Agamenon, e sei que são íntimos o bastante para que ele de você nada oculte. Conte-me, então, tudo o que se planeja com relação à minha filha, ou vou armar uma intriga tão medonha para o seu lado que Agamenon em menos de vinte e quatro horas mandará fazê-lo em pedaços e lançar seus restos aos cães. Fui clara, lacaio?

Serviçal- Mas não posso trair a confiança de meu senhor.

Clitemnestra - Você já disse o principal. Realmente aquele cão trama algo contra minha Ifigênia. Diga o resto, vamos!

Serviçal, intimidado: - O oráculo da deusa Artemis exige o sacrifício de sua filha para que os exércitos possam ter sucesso em sua campanha. Agamenon foi obrigado a ceder. Eis tudo.

Clitemnestra, horrorizada, abraça-se à sua filha: - Ifigênia posta sob a pedra dos sacrifícios! Estarei escutando isto?

Aquiles - Isto é terrível! Por que usaram meu nome para acobertar tal monstruosidade?

Ifigênia - Acalme-se, mamãe! Papai é contra esse sacrifício e impedirá que tal coisa aconteça!

Clitemnestra- Seu pai é um fraco, um joguete nas mãos daquele imbecil de seu tio!

Além do mais sua vaidade falará mais alto quando tiver a oportunidade de ostentar seu poder perante essa canalha inteira. Ouça o que estou lhe dizendo!

Ifigênia- Não, mamãe, não diga tal coisa!

Agamenon sai de sua tenda e vem em direção ao pequeno grupo.

Serviçal- Meu senhor aproxima-se. Devo retirar-me.

Aquiles- Também vou junto com você.

Clitemnestra- Vejamos o que este pulha tem a nos dizer!

Agamenon -Vamos para dentro, minhas queridas. O temporal pode desabar a qualquer momento.

Ifigênia, para seu pai: - Meu pai, que mal fiz eu para Artemis para que queira meu sangue em holocausto?

Agamenon, arregalando os olhos: - O que dizes, minha filha?

Clitemnestra, enfurecida: - Vamos, fingido, já sabemos de tudo! Como ousa oferecer sua própria filha em sacrifício para saciar a ambição e o despeito de seu irmão? Prefere, então, este pulha à sua própria filha?

Ifigênia, tomando as mãos de Agamenon: - Papai, você não permitirá isto, não é?

Agamenon, completamente abatido: - Pensa, minha filha, que não sofro diante desse terrível fado que pesa sobre você?

Clitemnestra - Monstro insensível! Quer levar avante, ainda, esse plano hediondo? Vai permitir que mãos assassinas enterrem o punhal do sacrifício no peito da filha que viu sair de minhas entranhas? Espera, então, que eu retorne para nossa casa sem ela? Que direi a todos? Que direi a Orestes, irmão dela, quando o pobre indagar de sua irmã? Diz em falsete: - "Orestes, meu filho, sua irmã casou, é verdade, mas em vez do belo Aquiles, tomou Caronte por esposo!"

Agamenon - Minha esposa... Desgraçadamente coube a mim a má sorte de fazer o primeiro grande sacrifício desta guerra! Muitos outros ainda virão, no entanto, e não cairão somente sobre nós. Os tempos são negros, e a cada qual caberá uma cota de sacrifício e de dor...

Ouvem-se vozes e brados distantes.

Primeira voz- Chegou a hora de aplacarmos a ira da deusa!

Segunda voz- Basta! Nossos homens morrem como moscas!

Terceira voz - Procedamos logo ao sacrifício!

Ifigênia corre aos prantos para os braços do pai, enquanto Clitemnestra permanece hirta, com o ar feroz e determinado.

Ainda no acampamento. Aquiles entra correndo e dirige-se a Clitemnestra e Ifigênia. Os relâmpagos estão mais intensos e trovões ribombam a todo instante.

Aquiles- Os soldados exigem que Ifigênia seja levada imediatamente ao altar!

Agamenon - Espere, tentarei ainda demovê-los.

Agamenon retira-se.

Ifigênia, para Clitemnestra: - É o fim, minha mãe! As Moiras cruéis já têm em suas mãos a tesoura que cortará o fio de minha vida.

Clitemnestra- Não, minha filha! Aquiles está aqui e há de proteger-te.

Aquiles- Infelizmente meus próprios homens se rebelam, Ifigênia! Mas nem por isso arredarei pé de seu lado. Saca então sua espada e põe-se em posição de defesa.

Ifigênia - É loucura, Aquiles amado! À parte: (Amado, que digo? Sim, amado, porque você me defendeu, ainda mais que meu próprio pai!)

O ruído dos gritos aumenta.

Ifigênia desvencilha-se da mãe e de Aquiles e aponta na direção de onde vêm os gritos:

- Eles todos têm razão! É preciso que se proceda ao sacrifício sem mais demora!

Clitemnestra- Não, minha filha! Você não sabe o que diz!

Aquiles - Somente sobre o meu cadáver a levarão para a terrível pedra dos sacrifícios!

Ifigênia, tornando-se serena: - Guarde sua espada, nobre Aquiles. Depois, voltando-se para Clitemnestra: - Quanto a você, minha mãe, serene sua alma, pois a minha não pertence mais a ninguém, senão à deusa que a reclama. Nossos navios devem partir sem mais tardança para Tróia, pois há uma infâmia que atinge a todos nós e deve ser a todo custo reparada. Esse ato infame perpetrado por Páris deve ser castigado, ou a ira divina voltar-se-á inteira contra nós mesmos.

Ifigênia compõe suas vestes e seu cabelo.

Ifigênia, afastando com um gesto de mão Clitemnestra, que faz menção de se aproximar da filha:

- Não, minha mãe, fique aqui. Irei sozinha até o altar e, lá, na presença do sacerdote e dos exércitos, oferecerei meu sangue em holocausto a fim de que seja finalmente aplacada a ira de Artemis.

Ifigênia faz menção de seguir, mas a meio caminho retorna, lançando-se aos braços da mãe.

Ifigênia - Adeus, minha mãe... Um dia a deusa permitirá que nos vejamos outra vez, estou certa. Sua cólera há de ser tão curta quão longa há de ser a sua clemência.

Ifigênia retira-se, enquanto Aquiles retém, a custo, Clitemnestra.

Aquiles- É inútil, sua filha já tomou a decisão, e receio que tenha sido a mais acertada...

Clitemnestra, arrancando os cabelos: - Jamais concordarei com o sacrifício de minha filha! Nenhuma disputa suja de ambições ou despeites valerá jamais o sangue virgem e puro de Ifigênia!

Tenta desvencilhar-se, mas Aquiles novamente a retém.

Clitemnestra, de joelhos e nos braços de Aquiles, finalmente rendendo-se à fatalidade:

- Vamos, deixe-me! Vou me recolher à tenda e só sairei dali quando tudo estiver terminado...

Aquiles aguarda que Clitemnestra entre na tenda. Depois afasta-se, lenta e pesarosamente. Relâmpagos e trovões sacodem o céu. Então, tudo fica escuro.

Ainda sob a escuridão começa-se a escutar o sopro do vento, a princípio fraco, que vai avolumando-se até tornar-se quase um vendaval. Ouve-se o ruído da lona da barraca onde está alojada Clitemnestra sacudir e esbaterse.

A cena clareia-se.

O serviçal visto anteriormente surge correndo.

Serviçal- Minha senhora! Um milagre espantoso aconteceu!

Clitemnestra sai de sua tenda, sacudida pelo vento. Seu rosto traz as marcas ensangüentadas de suas unhas. Ela nada diz.

Serviçal- Um milagre, minha senhora... Um milagre aconteceu!

Clitemnestra move apenas os olhos na direção do lacaio. Sua voz é cava e quase sem emoção, embora se perceba nitidamente que o ódio ferve em sua alma: - Julga, então, que sou surda, lacaio? Bem sei que minha filha já está morta. Depois, olha ao redor: - Os ventos são mais rápidos que os homens.

Serviçal- Mas senhora, sua filha não está morta! Eis o milagre!

Não vendo reação alguma de Clitemnestra, ele prossegue:

Serviçal- Ifigênia foi levada viva pela deusa! Após subir os degraus do altar e oferecer, com admirável coragem, o seu pescoço ao oficiante, vimos quando este finalmente ergueu o seu punhal. Todos viraram os rostos, pois ninguém, por mais rude ou valente que fosse, pôde sequer admitir a idéia de ver com seus próprios olhos tão terrível cena. Todavia, escutamos perfeitamente quando o punhal foi enterrado na vítima. Porém, quando erguemos nossos olhos, não era mais a doce Ifigênia quem estava no altar, mas um cervo, a se debater nos últimos estertores! "Milagre! Milagre!", gritamos todos. O sacerdote, então, ordenou que silenciássemos, dizendo em seguida: "Eis que a deusa compadeceu-se de Ifigênia e decidiu poupar sua vida!

Prosternem-se todos à sua divina clemência!" Todos dobramos contritamente nossos joelhos, enquanto o sacerdote retomava a palavra, dizendo: "A deusa levou Ifigênia consigo para Táuris, para que lá seja, a partir de hoje, a sua sacerdotisa. Sua cólera está, enfim, aplacada. Regozijemonos!"

Neste mesmo instante um forte vento começou a soprar e os soldados ergueram um grito de triunfo e alegria: "Viva! Podemos já partir para Tróia!".

Nesse instante Agamenon surge em cena. Traz um ar de alegria no rosto e abraça-se à sua esposa.

Agamenon- Alegre-se, Clitemnestra, minha adorada esposa! Nossa filha está salva! A deusa bondosa levou-a, para que seja sua sacerdotisa! Tamanha honra jamais esperamos que um dia viria a nos caber! Depois, voltando-se para o serviçal: - Vamos, temos muita coisa a fazer. Veja, o vento sopra com força cada vez maior! Aproveitemos para lançar ao mar nossa frota e vingarmos, finalmente, a meu irmão Menelau!

Ele deixa sua esposa, após dar-lhe um beijo. O serviçal o segue.

Clitemnestra está agora só diante da tenda. Os relâmpagos cessam, bem como os trovões. Apenas o vento continua a esbater suas vestes e seus cabelos desgrenhados. Então, aos poucos, uma chuva, a princípio fina, começa a cair sobre a solitária figura. Sem perceber, ela permanece imóvel. A chuva aumenta, e Clitemnestra, dando-se conta do fato, ergue sua face ferida e a oferece à água que desce copiosamente do céu. Depois, ergue ambas as mãos e as esfrega na face, para ajudar a limpar o sangue acumulado.

Clitemnestra, olhando para as mãos, que misteriosamente permanecem tintas do sangue, apesar da água que delas escorre, diz, então, com o ar malignamente determinado: -Vingança, Agamenon... Amas, então, a vingança?... Pois seja assim...



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